O Congresso Nacional Africano, no poder desde o fim do ‘apartheid’, perdeu a maioria absoluta pela primeira vez em 30 anos de governação na África do Sul, nas eleições de quarta-feira, embora continue a ser o partido mais votado.
Com 99,35% dos círculos eleitorais declarados, correspondente a 15.812.177 votos auditados e divulgados, o antigo movimento de libertação de Nelson Mandela vai permanecer no poder, mas perdeu a maioria absoluta com 40,24% (6.363.596 votos) indicou a Comissão Eleitoral Independente (IEC).
Em 2019, o partido liderado por Cyril Ramaphosa, que é também Presidente da República da economia mais desenvolvida no continente, obteve 57,5% dos votos, elegendo 230 deputados para o parlamento bicameral de 490 lugares.
A confirmarem-se os resultados, o Congresso Nacional Africano (ANC, na sigla em inglês) terá de encontrar partidos à esquerda ou no centro-direita que queiram formar uma coligação para governar o país nos próximos cinco anos.
Segundo os resultados provisórios, o Aliança Democrática (DA), principal partido da oposição na África do Sul, é o segundo mais votado com 27,71% dos votos (3.432.906), registando uma subida relativamente às últimas eleições, quando obteve 20.77%, elegendo 84 lugares no parlamento.
Em terceiro lugar está o uMkhonto weSizwe (Partido MK), o novo partido do antigo Presidente Jacob Zuma (2009-2018), fundado em Setembro, com 14,65% (2.316.611 votos).
O partido de extrema-esquerda Combatentes da Liberdade Económica (EFF), de Julius Malema, antigo líder da Juventude do ANC, está com 9,47% (1.497.593) dos votos escrutinados a nível nacional.
Segundo os dados da IEC, a afluência às urnas foi de 58,59% e os resultados declarados incluem os votos no estrangeiro.
Com 27,6 milhões de eleitores registados, um total de 52 partidos concorreram às eleições nacionais de um novo parlamento de duas câmaras – a Assembleia Nacional (400 lugares) e o Conselho Nacional de Províncias (90 lugares) -, assim como às assembleias provinciais e regionais das nove províncias do país, em três boletins de voto.
Para as eleições estavam registados 27.732.749 eleitores, que puderam votar em 23.392 assembleias de voto.
Nestas eleições o Presidente Cyril Ramaphosa enfrentou também um aumento do descontentamento da população por causa de vários escândalos de corrupção, a que se juntaou um contexto de desemprego endémico e de desigualdades cada vez maiores.
Em Fevereiro, Cyril Ramaphosa afirmou: “Nos próximos três meses, explicaremos a milhões dos nossos concidadãos por que é que o ANC continua a ser o melhor partido para as eleições de 2024”, acrescentando que “daqui a 50 anos, o legado do colonialismo do ‘apartheid’ e do patriarcado, ainda predominante na África do Sul, pertencerá à História”.
Na altura o chefe de Estado também prometeu que os candidatos do ANC a estas eleições seriam sujeitos a um escrutínio cuidadoso da sua integridade.
A província de KwaZulu-Natal, a mais populosa do país, é um reduto histórico do ANC, mas o principal partido da oposição, a Aliança Democrática, tem feito incursões na região e criou uma coligação com 10 pequenos grupos políticos para derrotar o adversário.
No entanto, o maior opositor do ANC em KwaZulu-Natal é o antigo Presidente Jacob Zuma (2009-2018), ex-pilar do partido histórico da África do Sul que criou um novo partido.
“Zuma representa a maior ameaça ao ANC em KwaZulu-Natal”, disse Zakhele Ndlovu, professor de política na Universidade de KwaZulu-Natal, em declarações à agência francesa de notícias AFP.
A África do Sul registou quase 84 assassinatos por dia entre Outubro e Dezembro de 2023 e a taxa de desemprego voltou a subir para 32,1%.
MAIS DO MESMO… COMO É REGRA
Em Dezembro de 2017, o novo presidente do Congresso Nacional Africano (ANC), Cyril Ramaphosa, concluiu o congresso do partido no poder na África do Sul com a promessa de erradicar a corrupção e acelerar a “transformação radical” da economia.
“Devemos acabar com a corrupção e devemos fazê-lo imediatamente”, declarou Cyril Ramaphosa durante o discurso que proferiu diante de cerca de 5.000 delegados do ANC reunidos em Joanesburgo.
“Devemos também agir com coragem contra as acusações de corrupção e de abuso de poder nas nossas próprias fileiras”, afirmou o, na altura, vice-presidente sul-africano.
Cyril Ramaphosa tinha na altura sido eleito para a liderança do ANC, no poder desde 1994, sucedendo ao muito contestado Presidente Jacob Zuma.
Vencedor de uma eleição em que superou a sua única rival, Nkosazana Dlamin Zuma, antiga líder da União Africana (UA) e ex-mulher de Zuma, por apenas 179 votos — num universo de 4.708 delegados votantes -, Ramaphosa passou a liderar um Congresso Nacional Africano dividido.
Durante o discurso, congratulou-se Cyril Ramaphosa que o partido do ícone Nelson Mandela tenha mantido a sua unidade apesar das suas fracturas: “Ainda estamos aqui 106 anos depois [da criação do ANC], estamos vivos, dirigimos [o país] e temos a intenção de [assim] permanecer”.
Ramaphosa prometeu, igualmente, acelerar a “transformação radical” da economia em benefício da maioria negra do país, cuja grande parte ainda vive na pobreza um quarto de século depois da queda do ‘apartheid’.
Conforme as resoluções adoptadas durante o congresso, Ramaphosa confirmou que o partido desejava alterar a Constituição para autorizar, sem condições, a expropriação de terras sem indemnizações, um assunto muito sensível na África do Sul.
“A expropriação sem compensação deve fazer parte dos mecanismos à disposição do Governo […], mas sem desestabilizar a produção agrícola ou a economia”, afirmou. A maioria das terras do país pertence à minoria branca.
Corrupção em África
Os países africanos são considerados dos mais corruptos do mundo, um factor que contribui para o empobrecimento do continente. Os esforços anticorrupção têm mostrado resultados mistos nos últimos anos, mas são essenciais para o desenvolvimento. Os governos precisam de combater a corrupção em vez de depender da ajuda externa.
Dos dez países considerados mais corruptos do mundo, seis estão na África Subsariana. O suborno, extorsão, troca de favores, clientelismo, apropriação e desvio de bens ou valores têm um custo anual de 150 mil milhões de dólares para os Estados de África, segundo estimativas da União Africana. Para comparar os países desenvolvidos doaram 22,5 mil milhões de dólares em ajuda à África Subsariana em 2008, segundo a OCDE, o que leva a argumentos de que os governos africanos precisam de combater a corrupção em vez de depender da ajuda externa.
«A corrupção em África varia entre o alto nível político, numa escala de milhões de dólares, e o baixo nível, com subornos a autoridades e funcionários públicos. No primeiro caso, impõe um maior custo financeiro directo ao país, no segundo caso tem um efeito corrosivo sobre as instituições básicas e mina a confiança dos cidadãos no governo», refere a jornalista Stephanie Hanson na publicação Council on Foreign Relations.
Mais de metade dos cidadãos da África Oriental pagam subornos para ter acesso a serviços públicos que deveriam estar livremente disponíveis, relata a Transparência Internacional (TI), o que também aumenta os custos de fazer negócios, uma vez que há uma correlação entre a eficácia no combate à corrupção e o aumento de produtividade de um país. “Atacar a corrupção é a melhor maneira de atacar a pobreza”, sintetiza Nuhu Ribadu, ex-presidente da EFCC, comissão anticorrupção nigeriana.
A abundância de recursos naturais, uma longa história de governos autocráticos, o não prestar de contas aos cidadãos e os conflitos e crises no continente têm criado grandes desafios à boa governação e à luta contra a corrupção em África, apesar dos progressos recentes em termos de democracia e direitos humanos em vários países.
«Os recursos naturais são cada vez mais tentadores para algumas elites africanas e empresas multinacionais. Também a assistência oficial ao desenvolvimento fornecida por agências nacionais e internacionais não está livre de abusos e corrupção. A prestação de serviços públicos é precária e os funcionários são frequentemente tão mal pagos, que recorrem à corrupção “insignificante” para sobreviver. Instituições que deveriam garantir o equilíbrio de poder dentro do sistema são muitas vezes limitadas pela falta de recursos e independência», resume a TI.
Na maioria dos países africanos, os governos não têm capacidade ou vontade em lidar eficazmente com a corrupção. Além disso, o nível de desenvolvimento e organização da sociedade civil também varia consideravelmente, embora tenda a tornar-se mais activa e preocupada com as questões de corrupção e boa governação.
«A sociedade civil e os meios de comunicação social livres podem levar a uma maior responsabilidade dos governos e à adopção de reformas nas áreas da governação e gestão dos recursos públicos, tornando-se os pilares da integridade nacional dos países», preconiza a TI.
Um exemplo dessas iniciativas é o da rede Corruption Hunter Network, que combate a corrupção em todo o mundo através de reuniões de apoio aos seus membros. Em África esta rede de promotores públicos deu ajuda directa e protecção a activistas como o nigeriano Nuhu Ribadu e o zambiano Maxwell Nkole na luta contra a corrupção nos seus países, embora este apoio nem sempre seja eficaz.
A corrupção endémica nos Estados africanos leva à revolta das populações. Rebeliões no Delta do Níger, na Nigéria, foram provocadas por reivindicações da comunidade local de 30 milhões de pessoas por não beneficiarem com a extracção petrolífera nas suas terras, cuja receita é desviada para funcionários governamentais.
A corrupção também corrói o processo político, com muitos políticos a interessarem-se por cargos e reeleição em função do acesso a dinheiros públicos e imunidade. A compra de votos e a fraude eleitoral «são formas mais fiáveis e fáceis de ganhar uma eleição do que tentar ganhar a aprovação dos eleitores pela boa governação», comprova Paul Collier, director do Centro de Estudos das Economias Africanas (CSAE).
Nos últimos anos, países como a Libéria, Ruanda e Tanzânia fizeram progressos na redução da corrupção e o Gana registou melhorias nas normas de boa governação e na transparência em actos governativos. Apesar de terem criado agências anticorrupção, a Nigéria, Quénia e África do Sul registaram escassos avanços. A ECA, comissão económica das Nações Unidas para a África, afirma que as comissões anticorrupção nacionais têm sido «muito ineficientes e ineficazes», em grande parte por causa do seu financiamento e supervisionamento pelo poder executivo. Sempre que incomodam o poder instalado estas agências são eliminadas, como aconteceu em 2009 com a Scorpions na África do Sul, ou os seus responsáveis são depostos ou forçados a sair do país, como se registou na Nigéria e Quénia.
Por outro lado, chefes de Estado africanos apoiam o financiamento oculto de líderes políticos de antigos países colonizadores. Robert Bourgi, ex-consultor do Governo francês para assuntos africanos, acusou o ex-chefe de Estado Jacques Chirac e o ex-primeiro-ministro Dominique de Villepin de terem recebido ilegalmente dinheiro e obras de arte dos presidentes do Senegal, Burkina Fasso, Costa do Marfim, Congo e Gabão. «Avalio em cerca de 20 milhões de dólares o valor total entregue», disse Robert Bourgi. Países europeus ignoram as actividades ilícitas e abusos de poder em África em troca de financiamentos partidários e acesso a matérias-primas.
As estimativas dos custos da corrupção no continente africano não podem ser muito rigorosas, uma vez que a avaliação não é composta apenas pela soma de dinheiro perdido, mas também de desenvolvimento adiado e crescimento das desigualdades, que são menos fáceis de quantificar. Os 150 mil milhões de dólares anuais que os relatórios da União Africana estimam incluem custos directos e indirectos, o que representa 25 por cento do Produto Interno Bruto dos Estados de África e um aumento dos custos dos bens transaccionáveis em 20 por cento.
Quanto à eficácia da ajuda externa, o estudo «The Cost of Corruption», publicado na revista Euromoney, estimava que 30 mil milhões de dólares acabaram em contas bancárias no exterior. Pelo lado da arrecadação de receitas fiscais, o Banco Africano de Desenvolvimento calculava que a corrupção leva à uma perda de aproximadamente 50 por cento e estima que as famílias de baixo rendimento gastam de 2 a 3 por cento dos seus rendimentos no pagamento de subornos, enquanto as famílias de maiores rendimentos gastam em média 0,9 por cento. Estas avaliações demonstram que a corrupção em África está disseminada e é dispendiosa para os cidadãos de mais fracos recursos.
A corrupção silenciosa pode ser tão prejudicial ao crescimento económico geral e ao desenvolvimento de um país como a grande corrupção e os escândalos de subornos que recebem maior atenção mediática. No relatório «Africa Development Indicators 2010», o Banco Mundial já definia a corrupção silenciosa como «o não fornecimento pelos funcionários públicos de bens ou serviços para que são pagos pelos governos».
Esta corrupção passiva acontece quando professores e profissionais de saúde que, segundo os orçamentos do governo deviam trabalhar a tempo inteiro, são absentistas porque os salários para lhes pagar foram desviados por funcionários corruptos.
«A corrupção silenciosa não faz os títulos dos jornais da mesma forma que os escândalos de subornos, mas é igualmente corrosiva para as sociedades», alertava Shanta Devarajan, economista principal para a Região África do Banco Mundial. A corrupção silenciosa permitiu fracos controlos aos produtores e grossistas de fertilizantes que tiveram como resultado que 43 por cento dos adubos vendidos na África Ocidental não tivessem nutrientes e que mais de metade dos medicamentos vendidos nas farmácias na Nigéria fossem falsificados. A corrupção diminui o bem público e cresce onde há poder autocrático e pobreza.